sábado, 7 de março de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 3

As Duas Asas da Cotovia
por Pedro Martins

No Verão que passou, recebi a visita inesperada de um amigo distante, há muito ausente de Sesimbra. Entre nós, poucos serão hoje os que ainda se recordam do porte distinto que Adolpho Rubens Cairo invariavelmente conferia à sua figura, sempre que, em manhãs solares cheias de gritas e gaivotas, percorria num afã peripatético o passadiço que outrora enleou o Macorrilho e o Alcatraz. Absorto do alarido próximo, Rubens Cairo colhia na aragem corrente o ânimo circunspecto com que, na companhia de algum confrade, discreteava sobre a Monadologia de Leibniz ou qualquer outro livro de jaez maravilhoso. E, no entanto, este homem austero, que, há cerca de doze anos, me foi apresentado num museu de Lisboa, é de seu ofício um fascinante pintor de arte, não tendo nunca, segundo se sabe, vertido em letra de forma, ao longo de uma vida já entrada, a mais insignificante cogitação.

Adolpho Rubens Cairo vive no Norte e raro desce à mourama. Vai para três décadas, fundeou retiro nas paisagens viridentes da bucólica Ribeira Lima. De cavalete armado e paleta soerguida, lembra um choupo firmado no remanso umbroso do Setentrião, sorvendo pelas raízes nodosas a seiva com que tinge as folhas votadas ao enlevo da luz. As suas telas, que o país persiste em ignorar, retomam a melhor tradição naturalista da nossa pintura de Oitocentos, sem, todavia, se furtarem ao devaneio peculiar de um estranho impressionismo simbolista.

Há três lustros bem contados que Rubens Cairo não vinha de rota batida às terras da Cotovia. Duas horas atrás, anunciara-me a sua chegada num telefonema sumário. Agora, ao sair do carro, estacou, entre surpreso e pesaroso, diante das construções circundantes. Topei-lhe o desencanto. E, algo provocador, alvitrei:

– Já não será exactamente o lugar paradisíaco que Raul Brandão aqui veio encontrar, quando congeminava a escrita d’Os Pescadores a bordo de um Dona Elvira… Das “casinhas juntas com lindos nomes rústicos” a que ele se referia, terão ficado meia dúzia, se tanto. Mas repare o Adolpho que ainda há uma ou outra nesga por onde se pode espreitar “o dorso formidável da Arrábida”.

Sempre de resposta pronta, o meu amigo disparou à queima-roupa:

– O excelente Raul Brandão, como o próprio apelido, numa etimologia libérrima, nos pode indicar, era de um tipo demasiado brando. Não veja nisto nada de censurável. Olha-se-lhe para o retrato e ficamos logo rendidos à presença soberana de um homem bondoso. Para brandão – e agora cinjo-me ao que vem no dicionário –, convenhamos que não estaria nada mal. Na sua bonomia, o autor do Húmus evoca, com efeito, uma espécie de archote, lentamente consumido pelo lume brando de uma chama suave. Era um escritor a caminho de ser pintor, como eu serei um pintor a caminho de ser escritor. A meu ver, só assim se explicará que ele nos tenha dado páginas luminosas, como essa que o Pedro agora citou, não obstante o desconforto que deve ter experimentado em viagens de calhambeque por caminhos indescritíveis, como os que então, por certo, ligavam a “lazarenta Cacilhas” à “piscosa Sesimbra”. Deste ponto de vista, Raul Brandão estava um pouco distante do seu fraterno amigo Teixeira de Pascoaes, que, num livrinho publicado em 1916, já havia solenemente proclamado: “Viajar em auto é correr mundo, a cavalo num relâmpago”.

– Sim, com efeito, é o que ele nos diz no início d’A Beira (num relâmpago). E, logo a seguir, impressionado pela cavalgada veloz do Isotta Fraschini em que embarcara, parece deduzir uma nova estética da força vertiginosa com que as imagens se sucedem em “confusão turbilhonante”. Claro está que a coisa não passou de uma grande facécia. Deduzir não é aderir. E Pascoaes, por via das dúvidas, apresta-se, umas linhas depois, a condenar a pintura futurista.

– Quando tudo isso veio a lume nas páginas d’A Águia (como o Pedro bem sabe, os primeiros capítulos do livro foram de antemão publicados na revista), já Fernando Pessoa, desavindo com o movimento portuense, abandonara a Renascença Portuguesa, para pontificar entre os corifeus do modernismo. O bico d’A Águia parece ter servido de aparo à caneta com que Pascoaes dardejou os do Orpheu. Fez mal, dirão hoje alguns. E a verdade é que agora se fala sobretudo em Pessoa, Sá-Carneiro e Souza-Cardozo, nanja em Pascoaes, Leonardo e António Carneiro. Malhas que o império tece…

Acercámo-nos então da esplanada de um café. Sentámo-nos. E eu observei:

– Não deixa de ser curioso… A sua chegada à Cotovia levou-nos a falar d’A Águia. Duas aves tão diferentes…

– No seu lugar, não teria a certeza disso. Olhe que a cotovia, tal como a águia, é um pássaro sagrado. Os gauleses veneravam-na. E os romanos, se bem que devotados à águia imperial, não lhe eram de todo indiferentes. Uma das legiões de Júlio César, a V Alaudae, tomou-lhe o nome de empréstimo…

– É muito interessante o que acaba de me dizer. Na verdade, dá-se o caso, que talvez não seja um mero acaso, de, nos últimos dias, eu ter andado ocupado com a escrita de um artigo sobre o nome deste lugar, destinado ao jornal da terra…

Nesse instante, um empregado aproximou-se da nossa mesa. Pedimos café. Logo que o homem virou costas, reatei o fio da conversa:

– De momento, continuo às voltas com a crónica, que ficou longe de estar concluída. A coisa fluiu até certo ponto, de modo muito intuitivo, e até poético. Mas, depois, encalhou. Por sinal, tenho aqui, neste caderno de apontamentos que anda sempre comigo, um registo do texto esboçado até agora. Gostava que me desse a sua opinião…

Entreguei o caderno a Adolpho, indicando-lhe a página para onde, na véspera, passara a limpo o rascunho da composição. O pintor leu-a em silêncio:

“A COTOVIA

Atreito ao senso comum, persisti no juízo óbvio anos a fio: o nome da terra advinha-lhe, por certo, da graça luminosa com que os ornitólogos, num gesto compreensivo, designam os membros da veneranda família
Alaudidae. Por entre calhandras e lavercas, alguma cotovia haveria de ter passado as malhas apertadas da taxionomia, pensava eu.

Por causa dela, deitei-me a devaneios insofridos. Comecei por engendrar uma ave platónica, que o fosse por antonomásia, como uma hipóstase. Nenhuma outra haveria de adejar sob o firmamento sem lhe prestar o tributo sempre novo de um canto inaudito.

Urdi, então, um entrecho mitológico, em que depositei a aura das maiores façanhas e o amargor dum desenlace sombrio. Tudo começaria com a insanidade de certo pássaro prometaico, voando, voando sempre, cada vez mais alto, apontado ao sol, cantando inebriado, sem parança, o romance da sua ventura. Mas, de súbito, ó maldição!, soou a hora do castigo que a alada ousadia requestava. O céu primaveril tornou-se baixo, baço como chumbo. Num ápice, o fulgor de um relâmpago, o ribombar do trovão – e um pássaro varado, feito do chão da terra, à sombra das árvores em flor.”

Ao cabo de dois minutos, Rubens Cairo não se furtou à prontidão de um juízo sincero:

– Interessante, sem dúvida. Se bem que o seu pássaro decaído, entre helénico e adâmico, esteja mais próximo de Ícaro do que de Prometeu. Seja como for, a parte final é sugestiva. A morte do pássaro resultaria no surgimento de um lugar ao redor do chão em que foi encontrar a sepultura – e isto por uma espécie de sortilégio alquímico que transmuta a essência da palavra. Sempre a cotovia teria de morrer para que a Cotovia pudesse nascer. Só não vislumbro o motivo que, aparentemente, o impede de levar a bom termo uma prosa encetada de modo tão promissor…

– Bom, a verdade é que fui assaltado pela dúvida, e isso transparece no início do trecho que acabou de ler…

– Como assim?!

– Nada nos garante que o nome da terra tenha tido origem num pássaro. O professor Moisés Espírito Santo sustenta a hipótese, bastante plausível, de se tratar de uma derivação de qotbiya, palavra que em árabe significa pólo ou polaridade, e designa um dos títulos do Imã do messianismo xiita. Pelo método etnológico que adopta, e que manda observar as relações que possam existir numa constelação de topónimos próximos, teríamos ainda de atender, nas redondezas, a Almada, como uma derivação de al-mahdi (“messias”) ou al-mahdya (“sede do mahdi”); a Maçã, como uma derivação de maça’um (“infalível”, uma das qualidades do mahdi); a Azoia, como uma derivação de az-zuia (“confraria”, local onde se ensinava a doutrina do mahdi); e a Arrábida, como uma derivação de ar-rabit (“eremitério” ou “castelo”), fortificação fronteiriça de onde se defendia o Islão ou se partia para a guerra santa.

– É possível que o caso seja tal e qual como o ilustre sociólogo no-lo apresenta. Mas, pela minha parte, prefiro continuar a pensar que aqui há pássaro. Note que a cotovia se eleva ou declina no céu a prumo com tal celeridade, que só por isso se distingue logo de qualquer outra ave, a ponto de nos surgir como um símbolo de mediação entre a Terra e o Céu. É bem o exemplo do pássaro sagrado, pelo que de religioso se revela na reunião operada entre os dois planos. E há ainda o seu canto, matinal e divinal – verdadeiro hino à alegria, sem Schiller nem Beethoven. Tudo está, pois, em ver e ouvir a avezinha, acompanhando-a em movimentos de alma. Poderia agora falar-lhe das páginas que Gaston Bachelard, ao estudar o voo onírico e a poética das asas, dedicou à cotovia, convocando Shelley e d’Annunzio. Prefiro, no entanto, sobrestar nalgum comedimento patriótico. Deste modo, lembrando-lhe Frei Agostinho da Cruz, serei, também, menos óbvio – mas, assim o espero, um pouco mais certeiro. Ora escute:

O livre passarinho que voava
Cantando para o céu, deixando a terra,
Da terra para o céu me encaminhava.

Talvez o piedoso monge da Arrábida não estivesse a pensar na cotovia quando escreveu estes versos. Nunca o saberemos. Mas nada nos impede de imaginá-lo. Para mais, é certo que o fundador da sua Ordem tinha especial predilecção pelas “irmãs cotovias”, e a literatura franciscana mostra-se abundante em alusões ao nosso pássaro. Depois, houve ainda Leonardo Coimbra, filósofo da fraternidade cósmica. Ele fez do canto da cotovia um dos sinais da divina Alegria criadora que, nas horas do Fiat matinal, afirma o seu triunfo sobre a morte. Já vê o Pedro que dificilmente algum messias, xiita ou cristão, poderia fazer mais, ou melhor, do que a pobre cotovia na redenção da humanidade que sofre. Persista no pássaro.

As chávenas de café acabavam de chegar à mesa. Por alguns instantes, fez-se silêncio. Era quase meio-dia e a turbamulta costumada dos automobilistas em vilegiatura já se tinha esvaecido pelas encostas que descem para o mar. Exortativo, Adolpho Rubens Cairo disse-me ainda:

– Persista na cotovia, que pela sua cor característica chega a confundir-se com o terreno onde poisa. Olhe bem para esta terra e verá como ela lhe sugere a forma de um pássaro, definindo um tronco e duas asas. O tronco é a estrada que a atravessa e lhe une, ou separa – não saberei dizê-lo –, as duas margens, que são como as suas duas asas. De um lado tem a Quintinha, a exploração agrícola, a fertilidade do agro. Se ler com atenção a passagem da obra de Moisés Espírito Santo que há pouco invocou, verificará que, num sítio contíguo, o mesmo topónimo se pode encontrar traduzido noutra língua, ou duplicado por sinónimos. Ninguém duvida que a Quintola prolonga a Quintinha, da mesma forma que a palavra Almoinha, de origem árabe, significa horta. Aposto consigo que o vale de permeio entre as cumeadas onde as duas aldeias se alcandoram permanece quase intocado pela construção, e que nele subsiste algum cultivo. Estarei errado?

– Segundo creio, será como diz.

– Pense agora no outro lado, que é o da Charneca. O nome diz muito. Campo bravio e baldio, chão maninho, avesso ao arado. Por lá se constrói em barda, não é verdade?

– Com efeito, assim é.

– Nada disto será de estranhar. As cotovias só reclamam campo aberto. No mais, tanto se lhes dá que o terreno seja fecundo ou intratável. A nossa Cotovia é que não teve de escolher. A sombra projectada pelas suas asas abarca um amplo horizonte…

Tudo tem limites. Desta vez, Adolpho Rubens Cairo acabara por levar demasiado longe o seu poder efabulatório. Simplesmente, olhava para esta terra a voo de pássaro. Que iriam dizer os leitores? Fiquei desencorajado. No meu íntimo, desisti de escrever sobre a Cotovia. A crónica para o jornal, essa, terá de esperar…